sábado, 8 de março de 2014

Nárnia

-Eles estão outra vez a lutar! - revirei os olhos ao ouvir aquelas palavras. Seria, o quê, talvez... a milésima vez que as ouvia? Eles apenas não se conseguiam suportar. O meu irmão, Ben Stanler, tinha sempre motivos para lutar com Edmund Pevensie. E vice-versa. Levantei-me do banco onde estava sentada, na estação de comboios, fechei o livro que estava a ler e pu-lo na minha mala, seguindo os outros até ao local da luta, não muito longe dali. Um grande círculo rodeava o meu irmão e Edmund. Peter Pevensie, o irmão mais velho de Edmund, também lá estava, a lutar contra dois outros rapazes. Várias pessoas faziam apostas em quem ia ganhar e a grande maioria gritava a uma só voz "Luta! Luta! Luta!" Furei por entre a multidão de alunos, perguntando-me onde estariam os adultos quando precisávamos deles.


Eu tinha dezasseis anos, o meu irmão e Edmund dezassete, mas eu parecia sempre ser a irmã mais velha e tinha quase sempre de me intrometer nas lutas dele, à exceção de quando eram as irmãs de Edmund, Susan e Lucy, a acabar com a luta. Eu andava num colégio feminino, onde também andavam Susan e Lucy, e Ben, Edmund e Peter andavam num colégio masculino do outro lado da estrada.
Aproveitei um momento em que o meu irmão estava a recuar de um golpe de Edmund para me intrometer entre os dois. Edmund estava prestes a atacar novamente quando viu que era eu. Olhando-me nos olhos, baixou a mão. Ignorei os arrepios que me percorreram a espinha e virei-me para Ben.
-Parem com esta parvoíce, JÁ - ordenei, não querendo saber se estava a parecer patética ou mandona.
-Melanie, sai da frente, ainda não acabei! - grunhiu o meu irmão, tentando agarrar em Edmund.
-Acabou! - voltei a gritar, agarrando Ben pelos braços. Ele parou de se debater, olhando-me com uma expressão confusa - estou farta das vossas lutas patéticas, ok? Porque é que não conseguem falar civilizadamente sem partir para a violência?
-Diz a rapariga que pratica esgrima - Ben esboçou um sorriso sarcástico, mas eu ignorei-o. Sim, praticava esgrima, mas isso não fazia de mim uma pessoa violenta.
-Depois não te venhas queixar quando fores expulso do colégio ou algo assim - redargui - mas tudo bem, se queres continuar a ser um rapazolas imaturo, tu é que sabes.
Afastei-me e ouvi o apito de funcionários do comboio, eles a acabarem de vez com a luta.
Peguei no livro que andava a ler e sentei-me num banco, à espera do comboio. Pouco tempo depois, uma voz interrompeu a minha leitura.
-Posso juntar-me? - olhei para cima, reconhecendo vagamente um dos amigos estúpidos do meu irmão.
-Não, obrigada - respondi firmemente.
-Oh, vá lá, não sejas tímida - replicou ele, sentando-se ao meu lado na mesma. Fechei o livro e preparei-me para me levantar quando ele pôs uma mão firme sob o livro - queres sair comigo mais logo?
-Larga o livro - disse, por entre dentes. Ele revirou os olhos.
-É só um livro, deixa.
-Não é apenas um livro! Larga! - ordenei.
-Ouve...
-Ela já te disse para te ires embora - disse outra voz. Olhei para cima, reconhecendo Edmund Pevensie. Tinha o lábio inchado e um arranhão na bochecha esquerda, mas sem ser isso parecia estar bem.
-E tu mandas em mim, Pevensie? - implicou o outro.
-Lidei com o Ben, também consigo lidar contigo, estúpido - cuspiu Edmund. Perante o olhar sério e perigoso de Edmund, o rapaz soltou o meu livro e foi-se embora. Levantei-me do banco, embatendo contra Edmund. O livro caiu e baixámo-nos ao mesmo tempo para o apanhar.
Ele sorriu ironicamente ao ler o título.
-Acreditas neste tipo de histórias? - perguntou ele. Eu peguei no livro e levantei-me. O livro chamava-se "O Reino de Nárnia".
-Só porque leio não quer dizer que acredito. São histórias de fantasia - aleguei.
As sobrancelhas dele uniram-se, como se estivesse a meditar nalguma coisa.
-Pois bem. Fazes bem em não acreditar. Não passam do que são: histórias - indagou Edmund.
-Obrigada pele teu esclarecimento - revirei os olhos e afastei-me, pensando em como aquele Edmund Pevensie conseguia mesmo tirar-me do sério. Não admira que Ben andasse sempre à pancada com ele.
Como o comboio devia estar quase a chegar, fui procurar Ben para irmos juntos para casa. Avistei-o a falar com uma rapariga do meu colégio.
-Ben, anda – disse-lhe eu, mas ele nem ligou, continuando a falar com a rapariga como se eu não estivesse ali. Puxei-o pelo braço – vamos.
Afastei-o da rapariga e ele resmungou.
-Fogo, que desmancha-prazeres!
-Agradece quando chegares a casa por não teres perdido o comboio – sorri eu. Finalmente, o comboio chegou e um vento frio varreu-nos as roupas. Olhando por cima do ombro, vi os quatro irmãos Pevensie sentados num banco atrás de nós. Pareciam estar a discutir, com a irmã mais velha, Susan a levantar-se e depois os outros.
De repente, o mundo pareceu girar. Ouvi alguém dizer:
-Parece… magia.
O vento era cada vez mais forte. Agarrei no braço do meu irmão com força. De repente, a estação começou a desvanecer-se, todas as pessoas a desaparecerem. Perguntei-me se estaria a desmaiar. O comboio começou a andar e pelas janelas deste distinguia pedaços de praia, mas isso era impossível. Depois o comboio desapareceu, o vento parou e veio o silêncio. Mas eu e Ben já não estávamos na estação de comboios. Não, eu e Ben encontrávamo-nos numa gruta, inserida numa linda praia. E não estávamos sozinhos. Peter, Susan, Edmund e Lucy estavam atrás de nós, mas, ignorando-nos, correram para a praia. Eu e o meu irmão, ainda estonteados, sorrimos um para o outro, confusos mas maravilhados pela beleza daquela praia. A areia era branca, o mar azul-cristalino, e havia rochas e vegetação.



Os quatro irmãos Pevensie descalçaram-se, atiraram com as malas e com os casacos para a areia e correram para o mar, chapinhando e mandando água uns aos outros. Eu e Ben, esquecendo as rivalidades, fomos também. Tentei que ninguém me molhasse, mas Ben mergulhou a minha cabeça debaixo de água. Quando reemergi, tentei alcançá-lo, mas ele era um ótimo nadador. De repente, Lucy mandou-me água, e eu, para me desviar, virei-me, embatendo novamente contra Edmund, que também se virara para trás para se proteger de Peter. As nossas cabeças chocaram, mas felizmente não caí para trás. Depois ele olhou para a encosta, coberta de vegetação e de… ruínas?
-Onde é que estamos? – perguntou ele e a realidade abateu-se sobre mim. Sim, onde é que estávamos?
-Bom, onde é que achas que estamos? – sorriu Peter, um sorriso conhecedor. Eu e Ben olhámos um para o outro, confusos. O que se estaria ali a passar?
-Não me lembro de haverem ruínas em Nárnia – prosseguiu Edmund e o choque invadiu-me. A minha boca ficou seca. Nárnia era o mundo das histórias que eu lia! Histórias que há pouco Edmund dissera que não passavam disso mesmo, histórias!
-Não passam do que são, histórias, hã? – fiz eu ver, olhando para Edmund sarcasticamente. Ele sorriu ironicamente.
-Mas afinal, que raio se passa aqui? – questionou Ben, saindo da água e olhando para nós os cinco – afinal o que é isso de Nárnia? E alguém me sabe explicar como é que num minuto estamos na estação de comboio e no outro estamos numa praia?
-É uma longa história, para dizer a verdade – confidenciou Lucy – e realmente, não percebo porque é que vocês dois vieram connosco…
-Aslan deve achar que eles nos são úteis – declarou Peter. Aslan… o Grande Rei, o Grande Leão, fundador de Nárnia.
-Estou a sonhar? – perguntou Ben e eu e Lucy rimos – Melanie, de que é que te estás rir, devias estar tão confusa quanto eu!
-Pois, mas eu leio, Ben – saí da água, aproximando-me da minha mala. Com as mãos molhadas, retirei o livro “O reino de Nárnia” de lá de dentro, estendendo-o a Ben – pensava que eram apenas histórias, mas afinal… - e olhei para os quatro irmãos – Aslan, a feiticeira Branca, os anões, os centauros, os minotauros e os animais falantes… é tudo verdade.
Os irmãos Pevensie acenaram com a cabeça. Eu sentia-me à toa, mas bastante entusiasmada, para ser sincera. Dentro de mim, sempre houvera esperança de que existissem outros mundos, mundos como Nárnia. Depois percebi.
-Vocês… - olhei para Peter, Susan, Edmund e Lucy demoradamente – dois filhos de Adão e duas filhas de Eva… são os reis e rainhas de Nárnia, os irmãos da profecia que derrotaram a feiticeira Branca!
Os quatro sorriram com orgulho e saíram da água.
-Rei Peter, o Magnífico – disse Peter.
-Rainha Susan, a Gentil – afirmou Susan.
-Rei Edmund, o Justo – declarou Edmund.
-Rainha Lucy, a Valorosa – finalizou Lucy.
-Ok, eu estou definitivamente a sonhar – comentou o meu irmão.
-Ben! – exclamei – tu sabes que estás acordado! É real e sei que é difícil de acreditar, mas tudo isto… tudo isto é real e nós estamos aqui. Se Aslan nos convocou, então temos de ser-lhe útil.
-Quem é esse Aslan, afinal? – questionou Ben.
-Aslan é o Grande Leão, o fundador de Nárnia – afirmou Lucy – e…
A pouco e pouco, eu e Bem fomos percebendo toda a história, contada pelos quatro irmãos. Falaram-nos da forma como tinham encontrado um guarda-roupa mágico que os levara até Nárnia, naquela altura confinado a um Inverno gelado por parte da Feiticeira Branca. Falaram-nos da guerra, da vitória deles e de Aslan, de como cresceram e se tornaram adultos em Nárnia e contaram-nos como um dia tinham regressado ao guarda-roupa, voltando ao mundo real, e voltando a ser crianças.
-Então quer dizer que por mais tempo que passemos em Nárnia, seja uma hora um dia ou cem anos, no mundo real o tempo não avançou?
-Exato. Podes envelhecer aqui que quando voltares ao mundo real, voltas à estação de comboio – disse Susan.
-E se morrermos aqui? – perguntou Ben. Os quatro irmãos olharam uns para os outros – esqueçam, não quero saber.
-Vamos explorar as ruínas – propôs Peter. Os outros começaram a subir a encosta. Fiquei para trás, secando o livro com o casaco que deixara na areia. Quando o coloquei de novo na minha mala, olhei para o lado. A poucos metros, Edmund encontrava-se a torcer a camisa, em tronco nu. Estava de costas, mas quando se virou para mim os meus olhos não conseguiram deixar de fitar o torso musculado dele.
-A gostar do que vês? – instigou ele. Revirei os olhos, desviando finalmente o olhar e encaminhando-me para a encosta.
-Querias – ripostei. Ele esboçou um sorriso sarcástico, seguindo-me. Os outros exploravam as ruínas. Olhei maravilhada há minha volta.
-Quem será que viveu aqui? – interrogou-se Lucy. Aproximei-me dela e vi Susan a pegar em algo caído no chão. Era uma peça de xadrez de ouro.
-Acho que fomos nós – alegou ela.
-Ei, isso é meu! – exclamou Edmund, aproximando-se, já com a camisa vestida – do meu tabuleiro de xadrez.
-Que tabuleiro de xadrez? – inquiriu Peter, seguido por Ben.
-Bom, eu não tinha exatamente tabuleiros de xadrez de ouro em Inglaterra – fez Edmund ver.
-Vocês viviam mesmo bem – comentou Ben.
-Éramos reis – afirmou Peter. Lucy olhou em volta.
-Não pode ser – disse ela, num sussurro, desatando a correr. Seguimo-la – não conseguem ver?
-O quê? – questionou Peter, confuso. Estávamos num grande descampado, cheio de ruínas. Lucy começou a colocar Peter, Susan e Edmund em ordem, dizendo:
-Imaginem paredes. E colunas ali. E um teto de vidro.




-Cair Paravel – murmurou Peter e eu reconheci o nome. Era o castelo onde os dois reis e as duas rainhas de Nárnia viviam. Ben preparou-se para perguntar o que isso era:
-O castelo onde eles viviam – adiantei-me eu. Edmund chegou-se perto de uma pedra redonda.
-Catapultas – alegou.
-Hã?
-Cair Paravel não ficou em ruínas sem querer – esclareceu ele – foi um ataque.
-De quem? – inquiri.
-É isso que vamos ter de descobrir – informou Susan. Peter e Edmund afastaram uma rocha do caminho, revelando uma velha porta de madeira. Peter rasgou um bocado da sua camisa, enrolando-a à volta de uma pedra e com outra fazendo fricção, tentado fazer fogo.
-Suponho que não tenhas nenhuns fósforos? – perguntou ele a Edmund.  
-Não, mas… - disse ele, remexendo na sua mala e tirando de lá de dentro uma lanterna elétrica – isto ajuda?
-Podias ter mencionado isso um pouco antes – sorriu Peter. Edmund entrou pela porta e Peter fez-nos sinal para entrar. Lucy seguiu Edmund, depois Susan, em seguida eu, atrás de mim Ben e por fim Peter. 
A sala era redonda e continha quatro estátuas, duas de mulheres e duas de homens e à frente de cada uma delas havia uma arca de pedra.

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