Dentro da caverna, parecia haver tanto a fazer, mas eu não era útil em
nada. Havia vários feridos a curar, mas eu nunca fora boa nisso, e agora não
tinha Asaf para conversar. Não sabia onde estava Ben ou Caspian, nem os
Pevensie sem ser Edmund e Susan, que ainda deviam estar lá fora.
Assim, caminhei até ao fundo da sala principal, passando por mesas com
espadas forjadas que me faziam lembrar Asaf e sentei-me no chão frio. Pouco
depois, alguém se sentou a meu lado.
-Ele deu-ta, não foi? - perguntou o meu irmão - o Edmund. Deu-te a
espada.
Não valia a pena negar, pelo que questionei:
-Como é que sabes?
-Não a tinhas a noite passada, quando invadimos o castelo, mas vinhas
com ela depois de teres estado com o Edmund, pelo que ou tinhas encontrado a
espada no castelo ou Edmund ta dera - declarou Ben.
-O meu irmãozinho anda a ficar esperto, hã? - gracejei eu.
-Que é se anda a passar entre vocês os dois? - interpelou ele - ou já
vem desde os tempos da escola?
-Não, Ben, e não se anda a passar nada. Ele apenas me tirou do castelo,
só isso - argumentei, tentando ignorar o meu ritmo cardíaco, que acabara de
aumentar.
-Tu percebes que ele é, dos quatro Pevensies, aquele em que se pode
confiar menos, certo?
-E então, porquê? - inquiri.
-Porque ele traiu os irmãos na primeira vez que vieram a Nárnia -
alegou Ben. Engoli em seco. Sabia que na história que lera um dos irmãos traíra
os outros, mas nunca pensara nesse facto até ali - e traiu-os por doces. A
Feiticeira Branca dava-lhe doces e prometia-lhe que o tornaria Rei caso ele
levasse os irmãos até ela.
-Está bem, mas ele arrependeu-se, não foi? - repliquei, lembrando-me do
que acontecera ao rapaz na história - lutou contra a Feiticeira Branca na
batalha e foi coroado rei de Nárnia, algo que não teria acontecido se ele não
tivesse mudado mesmo e continuasse a ser um traidor. E agora está ao lado dos
narnianos. Toda a gente merece uma segunda oportunidade.
-Apenas não quero que te magoes – proferiu Ben.
-Afinal, por que razão é que vocês lutavam, na escola? Nunca o cheguei
a perceber – admiti. Ben ficou calado durante muito tempo, meditando no que
havia de dizer. Por fim, disse apenas:
-Por causa de uma rapariga.
Engoli em seco, sentindo uma pontada de ciúmes. Quem seria essa rapariga? Provavelmente alguém por quem ambos tinham uma paixoneta.
-E todas as lutas que houve foram sempre por causa dela? – interroguei.
-Bem, nem todas – respondeu Ben – de facto, agora que penso nisso, eu e
Edmund lutávamos por tudo e por nada. Bastava que ele fizesse ou dissesses algo
que me irritasse para nos começarmos a provocar e a atacar, ou então era eu que
provocava e tudo era pretexto para lutarmos. Como daquela vez, enquanto
jogávamos futebol, que lhe preguei uma rasteira inocente ou quando ele se riu
por eu ter falhado o penálti. Mas, sabes, as maiores lutas eram aquelas que
começavam por eu o ter apanhado a olhar para… - Ben desviou o olhar,
subitamente embaraçado – a rapariga.
-Oh, Ben, por causa disso? Agora ele não pode olhar para quem quer? Ou
ele também te batia quando tu olhavas para ela?
Ben fez uma expressão estranha.
-Eu não olhava para ela da maneira que ele olhava, podes ter a certeza
disso.
Encolhi os ombros.
-Vai dar ao mesmo. Será que vocês não são capazes de dialogar?
Foi a vez de Ben de encolher os ombros. Depois ouvimos um ruído
parecido com o estilhaçar de vidro. Eu e Ben levantámo-nos, e vimos os quatro
Pevensies, Trumpkin e Caspian a saírem da sala onde estava a Mesa de Pedra e o
retrato de Aslan. Vinham todos com cara de poucos amigos. Caspian passou por
nós e saiu lá para fora.
-O Nikabrik morreu – declarou Trumpkin.
-Que aconteceu? – questionou Ben.
-O Nikabrik trouxe um lobisomem e uma bruxa para invocarem de novo a
Feiticeira Branca, para derrotar os telmarinos – explicou Susan – e tudo o que
ela precisava era de uma gota de sangue de um filho de Adão. Tentou primeiro
com Caspian, depois com Peter, mas eles revoltaram-se e lutaram contra eles.
Nikabrik tentou apunhalar Lucy, mas Trumpkin matou-o. E depois o Edmund espetou
a espada contra a parede de gelo onde se encontrava a Feiticeira Branca, e o
gelo quebrou-se e assim ela desapareceu.
Olhei para Ben como que a dizer-lhe “eu disse-te que ele mudou”, mas
ele ignorou-me. Não me parecia que ele fosse alguma vez mudar completamente de
opinião acerca de Edmund. Depois Peter voltou para dentro da sala da Mesa de Pedra,
Lucy seguiu-o e Susan foi ver de Caspian.
-Trumpkin, queres ajuda com o corpo do Nikabrik? – inquiriu Edmund.
-Eu posso ajudá-lo com isso – ofereceu-se Ben, não querendo ficar atrás
de Edmund. Revirei os olhos, imaginando que seria por coisas daquelas, insignificantes,
que eles começavam sempre a lutar.
-Deixe-se estar, rei Edmund, o Ben ajuda-me – disse Trumpkin e partiram
os dois. Ben devia estar tão concentrado em não ser ultrapassado por Edmund que
se esquecera que eu ficara sozinha com ele.
-Desculpa não ter ajudado. Se eu soubesse… - comecei eu, mas Edmund
interrompeu-me.
-Tu não sabias. Sei que terias ajudado. Até o teu irmão teria.
A menção de Ben fez-me lembrar a rapariga por quem eles tanto
discutiam. Eu conhecê-la-ia? Seria da minha escola? Talvez fosse até da minha
turma! Se calhar era aquela com quem Ben estava quando eu o chamara para
apanhar o comboio…
-Queres treinar? – perguntou Edmund – isto, claro, se o teu irmão não
se importar…
-Ele não é meu pai – contrapus – e cá para nós, tu és com quem eu mais
gosto de esgrimir, porque és o que dás mais luta.
Edmund esboçou um meio sorriso travesso.
-Estás a admitir que eu sou o melhor?
-Não sabia que eras assim tão convencido! – ripostei.
-Só contigo – replicou ele, mas calou-se abruptamente.
-Estás a corar! – ri eu, pois não sabia que outra coisa podia fazer.
-Não estou! – argumentou ele, saindo lá para fora. Segui-o e
provavelmente não devia ter-me rido dele pois ele aproveitou para me dificultar
ainda mais a vida enquanto esgrimíamos.
A certa altura, Edmund estacou. Eu encontrava-me de costas para a
floresta, pelo que só quando me virei, sem considerar a possibilidade de aquilo
poder só um truque de Edmund para me enganar e atacar, é que vi o que fizera
Edmund parar. Um exército de telmarinos saía da floresta para o prado, em
direção à caverna de Aslan.
-É melhor avisar o Peter e os outros que os telmarinos estão a chegar –
disse Edmund, desaparecendo para o interior da caverna. Depois ele, os
Pevensie, Caspian, Trumpkin e Ben juntaram-se a mim, enquanto observávamos o gigante
exército deles a ordenar-se a vários metros de distancia de nós.
Rapidamente, reunimo-nos todos na sala da Mesa de Pedra para delinear um plano.
-Com mil bombas, é esse o teu grande plano? - questionou Trumpkin a Peter após ele nos ter contado o que pretendia fazer - mandar uma menina, pela floresta escura, sozinha?
-É a nossa única hipótese - contrapôs Peter, que queria mandar Lucy e Susan pela floresta de forma a poderem encontrar Aslan.
-E ela não vai estar sozinha - afirmou Susan. Trumpkin aproximou-se de Lucy, olhando-a nos olhos.
-Já não morreram demasiados de nós? - perguntou.
-Nikabrik também era meu amigo - interveio Trufflehunter, o texugo - mas ele perdeu a esperança, e a rainha Lucy não, e muito menos eu.
Com isto, Reepicheep, o rato, desembainhou a sua espada, dizendo:
-Por Aslan.
-Se é assim, vou contigo - disse Trumpkin a Lucy.
-Não, precisamos de ti aqui - declarou ela.
-Temos de os empatar até a Lucy e a Susan voltarem - alegou Peter.
-Perdão - intercedeu Caspian e Peter olhou para ele com transtorno - Miraz pode ser um tirano, um assassino, mas como rei, está sujeito às tradições e expectativas dos seus súbditos. Existe uma em particular que nos pode dar algum tempo.
Olhámos todos para ele, expectantes, à espera que prosseguisse.
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